sábado, 22 de março de 2014

O meu 25 de Abril (26)

E a função ía começar de choque !!! Depois de uma espera insuportável de mais de uma hora e meia, eis que alguém anuncia o inicio do Festival, o Vilas Boas, o Nuno Martins (sempre assobiado cada vez que aparecia com seu ar engravatado), não me recordo. Eis que entram os músicos, e em último ali estava a lenda em pessoa, Miles Davis, vestido em pele, calças justas acetinadas verdes, faiscante como uma estrela pop, nada a imagem do músico de jazz, do tal que era cultura. Curvado com o trompete ora apontado para o tecto ora para o chão arrancava dele sonoridades eléctricas que jamais voltarei a ouvir, a música era de uma grande intensidade, e quando ele pára, após um longo solo inicial, acompanhado de muitos Kw de guitarra, baixo elétrico e orgão, eis que um senhor de carapinha inicia um solo de piano elétrico de uma beleza rara, de uma subtilizeza, em crescendo, que nos fazia escutar um fraseado nítido e limpido, enquanto, qual cisne negro, a cabeça se inclinava para trás. Não o conhecíamos, mas estávamos perante outra lenda, que "apenas" acompanhava Miles, era um tal Keith Jarrett, ainda hoje um grandessíssimo pianista. Após mais de hora e meia em que o publico delirou com tal função, ela interrompe-se. Sabe-se agora que Miles exigiu ser o primeiro a tocar, pois sabia que era o primeiro festival de jazz realizado no país e não aceitava que ninguêm tocasse antes dele, pois era mesmo o maior musico de jazz vivo, tinha tocado com todos os que contavam, Parker, Monk, Coltrane, Ellington, e agora inventava um nova forma, a "fusão", criticada por muitos por ser comercial, quase pop, mas apreciada por muitos mais, desta exigência tudo se teve de alterar para satisfazer sua alteza real !!!
Após mais uma hora, já próxima a meia noite, entra um pequeno grupo,  mais aparentado ao que era um quarteto de jazz. Três negros, um branco, espartanos, viscerais, sofridos, agressivos, música incapaz de se domar, bater o pé, seguir um ritmo que mudava sempre e uma bateria que apenas saltitava de forma a não permitir qualquer lógica, sentido ou repetibilidade. O homem que agredia com o sax era Ornette Coleman, super negro, suado, outro de corneta em punho era Dewey Redman, a bateria negra saltitante Ed Blackwell, "bem negro" como o nome indicava, e o branco, nem mais que Charlie Haden, que na segunda música faz a célebre dedicatória aos movimentos de Angola e Moçambique, facto que marcaria para sempre o festival, altura em que a sala vem abaixo, situação que o conduz no final do espectáculo à PIDE, e no dia seguinte durante a manhã a um avião para Londres.
Ainda a noite ía a meio, tocou um quarteto onde ponderava um sax de quem hoje é Rão Kiao, mas na altura tinha outro nome e ainda não apanhara as canas da Índia para fazer flautas, e termina a noite pelas 5 da manhã com Dexter Gordon, acompanhado por Marcos Resende, entre outros.
Para quem tinha estado tantos anos sem nada, foi uma verdadeira "barrigada" irrepetível, pois cada músico era um monstro sagrado do jazz. O calor era intenso, o suor estava por todo o lado, os músicos deram o máximo, perceberam a intensidade do momento, o público estava esgotado.
Dormimos duas horas num saco cama, nas reentrancias do Pavilhão, local que tinha sido aproveitado por outros para "urinar" pois WC havia poucos ou nenhuns, pelo que o cheiro era tão intenso quanto o sono. Foi uma overdose, uma noite mágica e poderosa que jamais se repetiu por cá. A adrenalina do proibido transposto enchia os nossos corações. Enquanto nós estávamos ali muitos da nossa idade estavam no capim numa guerra de que nada entendiam. Ainda assim estávamos melhor.

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